O projeto de lei do Executivo (PLE) 15/2022, aprovado pela Câmara Municipal no dia 14, vai mudar a forma como Porto Alegre se relaciona com o patrimônio histórico e cultural que integra sua paisagem urbana. Para vigorar, a nova legislação necessita somente da sanção do prefeito Sebastião Melo (MDB), proponente das alterações, o que deverá ocorrer nos próximos dias. Entretanto, a nova forma do regramento pode não pacificar o tema, o qual envolve mais de 5 mil edificações que poderão ser impactadas pela mudança, conforme a prefeitura.
Há imóveis inventariados no Centro Histórico, no Moinhos de Vento, em bairros do 4º Distrito e outras regiões da Capital. Um dos conjuntos de edificações expressivo se encontra no bairro Petrópolis. Compreende, especialmente, prédios localizados nas ruas Ivo Corseuil, Sacadura Cabral e Lagoinha, além de trechos da Avenida Protásio Alves.
O texto que o prefeito receberá para seu exame antes da decisão saiu da Câmara aprovado por 21 votos favoráveis e 14 contrários. Das seis emendas apreciadas, cinco foram aprovadas e uma, rejeitada.
As modificações afetam parte dos dispositivos da Lei Municipal 12.585, a qual estabelece regras sobre o Inventário do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis do Município de Porto Alegre desde 2019, quando foi criada. Em resumo, é ela que doutrina e põe método sobre como casas e outras construções antigas serão consideradas relevantes para contar a história porto-alegrense.
Melo afirma que a cidade precisa preservar sua cultura expressada pelas feições urbanísticas e pode fazer isso por meio do tombamento e da incorporação de bens ao inventário municipal.
— O que nós estamos fazendo é uma pequena mudança, de um assunto que foi muito debatido entre o Urbanismo e a Cultura (secretarias municipais), e chegamos à conclusão. E, agora, com a decisão da Câmara, eu vou sancionar a lei. E, portanto, passa a ser o regramento da cidade — define Melo.
Como principal argumento, a administração da Capital sustenta que a nova legislação vai qualificar a proteção ao patrimônio histórico da cidade.
— Passa a concentrar os recursos nas propriedades que realmente representam a formação cultural de Porto Alegre. Vai contribuir para a sustentabilidade econômica dos imóveis inventariados — pontua o secretário municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm.
A regra nova, segundo ele, valerá para todos aqueles que não requisitarem a incorporação ao inventário antes da vigência da nova lei.
Compensação financeira
Até a mudança passar a vigorar, tanto a propriedade de imóveis classificados por sua própria importância para a história da cidade — definidos como bens de estruturação — quanto dos chamados imóveis de compatibilização, poderia resultar em uma compensação denominada Transferência do Potencial Construtivo (TPC).
Com o dispositivo, as propriedades consideradas de compatibilização — que são aquelas localizadas no entorno do bem de estruturação e compõem um retrato urbanístico em um ponto histórico da cidade — deixam de ter direito ao pedido de inclusão no inventário e, portanto, não acessarão mais as compensações pelo compromisso de preservar o imóvel.
— Tem muita gente. Pessoas que, por anos, ficaram impedidas de realizar até mesmo uma simples manutenção em sua propriedade. Gente que acumulou dívida de IPTU porque tinha um imóvel caro e não podia negociar. Outras questões ainda mais delicadas. Toda essa gente esteve comprometida com a legislação e, diante dessa mudança, ficará, agora, desprotegida — receia o advogado Daniel Nichele, representante em ações discutidas no âmbito do Judiciário.
Já para o vice-presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado (Sinduscon-RS), Antonio Ulrich, a mudança irá retirar uma “trava” das relações imobiliárias necessárias à preservação do patrimônio. Ulrich afirma que, na visão da entidade, havia um número excessivo de bens inventariados.
IAB alerta para falta de controle social sobre a preservação
Tipo de permissão para que os beneficiários possam construir e ampliar edificações, inclusive em outras áreas da cidade e sem qualquer relação com o bem a ser preservado, a TPC é um título público de propriedade que permite ao proprietário a sua negociação. O portador do título pode vender ou trocar com outra pessoa ou empresa, razão que atribuiu potencial comercial a esses documentos.
A TPC passou a ser procurada e disputada no mercado. Com valores que orbitam em cerca de R$ 250 a perto de R$ 4 mil por metro quadrado livre para ser construído, para cima ou para os lados, esse tipo de título formou uma espécie de mercado de investimentos livre de regulação pública e sem mecanismos de controle sobre o destino real das contrapartidas por investimento público em preservação urbanística, analisa o advogado.
Para o Instituto de Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS), a alteração da lei peca ao deixar de estipular modalidades de controle e prestação de contas à sociedade. Na visão do presidente do IAB-RS, Rafael dos Passos, tais dispositivos podem ser objeto de atenção do poder público por meio de decreto do prefeito ou de regulamentação por lei complementar.
— Não precisa ser uma área cinza. Precisa ter instrumentos de fiscalização e controle social para garantir que os recursos empregados cheguem efetivamente em sua finalidade, que é a preservação. Entidades da sociedade civil, conselhos podem contribuir para que isso ocorra, mas não têm sido instrumentos utilizados — alerta.
Passos também receia que a exclusão em massa dos imóveis de compatibilização e o caráter temporário das contrapartidas para os bens de estruturação, já que os títulos podem ser repassados, prejudiquem a proposta de preservação do cenário urbanístico da Capital.
— Existe uma preocupação com o alcance limitado e temporário que essa nova legislação pode ter. Preservação é um processo permanente e requer recursos. Se não houver controle e definição clara de compromissos e restrições, perde-se o conceito de preservação da paisagem urbana. É como entregar os dedos para ficar com os anéis — compara o dirigente do IAB-RS.
Vereador da Capital e opositor ao PLE 15/2022 durante o trâmite legislativo, Roberto Robaina (PSOL) acrescenta que, em sua visão, a nova regra pode gerar injustiças por conta da nova forma de distribuição das contrapartidas para preservação.
— Irá concentrar mais recursos em bens que já são mais valiosos e deixa na mão proprietários que, antes da liberação, também ficaram impedidos de vender ou modificar seus imóveis — exemplifica.
O ponto de vista da administração diverge.
— Essa restrição onerava o proprietário de um bem de compatibilização, pois ele não podia fazer nenhum tipo de modificação no imóvel sem a autorização do poder público — defende o secretário Germano Bremm.
Fonte: GZH